O Brasil vencia Zaire por 2 a 0 e tinha uma falta a seu favor quando Mwepu Ilunga correu na direção da bola e deu um chute no momento em que os brasileiros se preparavam para a cobrança. O lance, que parece inexplicável ou de uma completa ignorância por parte do jogador, ajuda a contar a história do país que pode voltar a uma Copa do Mundo cinco décadas depois, agora com o nome de República Democrática do Congo.
A história da RD do Congo é uma das mais sangrentas do continente africano. No momento da divisão do território africano pelas potências europeias, o rei belga Leopoldo II prometeu combater o tráfico de escravos e levar educação e civilidade ao Congo sem que ele pertencesse à Bélgica.
Criou-se o Estado Livre do Congo, que se tornou um projeto pessoal de Leopoldo II. Só que o regime acabou sendo um dos mais sanguinários do continente, com cerca de 10 milhões de mortes pela rigidez na exploração do marfim e da borracha (algumas fontes falam no dobro desse número).
qTodo mundo vê os massacres no Congo, mas todo mundo permanece caladoCédric Bakambu, artilheiro congolês
Cidadãos que não conseguiam cumprir as cotas mínimas na exploração dos produtos recebiam a pena de morte. A carnificina ficou eternizada em fotos de cestas de mãos cortadas, que viraram o símbolo do regime. Os oficiais cortavam as mãos de quem era assassinado como prova da execução, e até de quem não era morto para tentar provar que o serviço tinha sido feito. Aldeias chegavam a pagar tributos em mãos para evitar represálias.
O regime de Leopoldo II durou mais de duas décadas e acabou em 1908, quando o território foi formalmente anexado ao Estado belga como o Congo Belga. Só em 1960 o país conseguiu a independência para se tornar a República Democrática do Congo.
O futebol como instrumento político
Em 1965, Mobutu Sese Seko orquestrou o golpe militar que o colocaria no poder como segundo presidente do Congo. Em uma campanha de africanização dos nomes, Mobutu transformou a República Democrática do Congo em Zaire em 1971.
Além de usar esse movimento, que mudou também nomes de ruas, cidades e até incentivou a mudança no nome de pessoas, para legitimar junto ao povo seu governo autoritário, Mobutu percebeu que o esporte seria outro grande aliado.
Anos antes de oferecer 10 milhões de dólares para Muhammad Ali e George Foreman (5 para cada), que fizeram a luta do século no Zaire, Mobutu investiu na seleção de futebol do país. Convenceu descendentes de congoleses que nasceram na Europa a defender a seleção nacional através de promessas de carros, casas e dinheiro. Investiu em estrutura para a seleção local e montou o time mais forte do continente.
Muhammad Ali e Mobutu se encontram na véspera da “luta do séculos” @Getty /
Mobutu levou a Copa Africana de Nações de 1968 ao país e o Zaire acabou campeão. O ápice da campanha propagandista foi a vaga direta na Copa de 1974, desbancando Marrocos e Zâmbia.
Após uma estreia boa contra Escócia, derrota por 2 a 0, mas com várias chances criadas, o Zaire levou de 9 a 0 da Iugoslávia na segunda maior goleada da história das Copas até hoje. A goleada só não foi maior porque os iugoslavos, que abriram 6 a 0 no primeiro tempo, tiraram o pé no fim.
O que fez o time, de uma estreia dura contra a Escócia, se tornar um saco de pancadas na segunda partida? Os jogadores do Zaire descobriram que Mobutu estava usando o dinheiro que lhes prometera como premiação e que não tinha a intenção de lhes pagar o prometido.
O ditador, furioso pela atuação, garantiu que nenhum atleta voltaria a pisar no Zaire em caso de nova goleada contra o Brasil, acima de quatro gols de diferença. Alguns relatos falam de uma ameaça maior, de que uma goleada vergonhosa poderia custar a vida dos atletas.
Voltamos a Ilunga e o chute no momento da cobrança de falta brasileira. Faz mais sentido agora? O jogador explicou, anos depois, seu ato.
“Nós não estávamos felizes. Passamos dois meses longe das nossas famílias, sem ninguém do nosso lado. Não tinha os meios de comunicação de hoje. E eles simplesmente ficaram com nosso dinheiro?”, começou por explicar.
“Foi uma oportunidade que tive para provocar o árbitro. Eu queria que ele me expulsasse. Eu disse a mim mesmo: ‘não vou jogar mais’. Por que ficaria no campo, com o risco de não voltar para casa, enquanto aqueles que tomaram nosso dinheiro estavam assistindo em paz na arquibancada?”, questionou.
Ilunga recebe amarelo após chutar a bola em cobrança de falta do Brasil @Getty /
O jogo acabou 3 a 0 e os jogadores, apesar de nunca terem visto a cor do dinheiro prometido, puderam voltar ao Zaire, que voltou a ser República Democrática do Congo após a queda de Mobutu em 1997. Mas o futebol no país levou ainda mais tempo para curar as feridas…
Sonho com a Copa em meio ao caos
A mudança no poder não trouxe dias melhores para o Congo. O país vive uma guerra civil que sofreu uma escalada em 2022, com o grupo rebelde M23, que teria o apoio de Ruanda, ganhando força e território.
Houve um acordo de paz assinado neste ano com a mediação dos Estados Unidos, mas órgãos internacionais seguem apontando para desaparecimentos arbitrários, tortura e violações dos direitos humanos. Milhões de pessoas são obrigadas a se deslocar em meio ao conflito.
Dessa vez, o futebol tenta servir não como propaganda para qualquer regime, mas como ferramenta para lançar luz às questões humanitárias no país. Cédric Bakambu grande nome da seleção, celebra seus gols com uma mão na boca e o dedo apontado para a cabeça, como uma forma de chamar a atenção do mundo para o que acontece no país.
“Todo mundo vê os massacres no Congo, mas todo mundo permanece calado”, chegou a escrever nas redes sociais. Os jogadores do Congo chegaram a repetir o gesto durante um jogo da Copa das Nações Africanas e até mesmo outros atletas de outras seleções africanas se solidarizaram, como Ismaila Sarr, que celebrou um gol por Senegal na última Copa com gesto parecido.
Sarr chama a atenção para violência na África durante a Copa de 2022 @Getty /
Semifinalistas da CAN em 2023, os Leopardos estão a um passo de voltar para uma Copa do Mundo. Neste final de semana, arrancaram um empate em 1 a 1 e eliminaram a Nigéria nos pênaltis para garantir uma vaga na repescagem internacional para o Mundial de 2026.
Se conquistar a vaga para atuar na América do Norte, os jogadores congoleses terão a oportunidade de chamar a atenção do mundo para um país negligenciado há mais de um século…
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