Curaçau é o menor país a disputar uma Copa do Mundo. Tomou o posto que era da Islândia como menor nação a se classificar para a competição. Um feito, por si só, magnífico. E uma história que Keniji Gorré nos ajuda a contar, em entrevista a nossos parceiros do Zerozero.
A verdade é que, talvez por causa do passado colonial, esta seleção — pelo menos na convocação de jogadores que garantiu o passaporte para a Copa do Mundo — não conta com nenhum atleta nascido na ilha caribenha. Todos são, na verdade, naturais dos Países Baixos.
Kenji Gorré representa a seleção holandesa desde 2019, e é mais um desses exemplos, apesar de ter feito toda a sua formação na Inglaterra, mais especificamente no Manchester United. Essa parte da vida do atleta será abordada mais à frente, mas por agora é mais importante entender como é viver um momento de tamanha importância.
“Isso foi um impossível que se tornou possível. Somos o menor país a chegar a um Mundial. Isso só mostra que os processos funcionam. Quando acreditamos muito, mesmo quando o mundo diz que somos loucos. Ouvi, em praticamente todos os times em que joguei: “[risos] Copa do Mundo? Você nunca vai conseguir. Nunca vai chegar lá!” Agora todos podem ver a ‘pequena’ Curaçau no próximo Mundial. É um sonho que toca meu coração, o meu e o de todos os envolvidos”, disse o nosso entrevistado, que atua no Maccabi Haifa, de Israel.
“Está sendo muito emocionante, quase surreal. São muitas emoções diferentes, a ilha está ‘louca’. Nunca vi nada assim por aqui. Vamos disputar o maior palco do futebol mundial. É o auge de uma carreira!”, resumiu.
Jogadores celebram classificação @Getty Images
Expectativa por Portugal, Holanda, Brasil e Inglaterra
O sonho continua para Curaçau. Depois de faz história com sua seleção, Gorré sonha com os possíveis rivais, com sorteio agendado para 5 de dezembro.
“Se pudesse, enfrentaria Portugal, sem dúvida. Joguei lá por cinco anos, criei esse sentimento. Além disso, seria uma experiência inacreditável jogar contra Cristiano Ronaldo. Meu jogador favorito é Lionel Messi — cresci vendo futebol e o adorando — mas, obviamente, respeito o Ronaldo. Ele conquistou muita coisa. São dois jogadores de outra dimensão”, afirmou.
“Além disso, gostaria de enfrentar a Inglaterra. Cresci lá e provavelmente jogaria contra vários jogadores contra quem atuei nas categorias de base e no começo da carreira. Os Países Baixos também seriam espetaculares; temos muitos jogadores que nasceram lá, jogaram lá… existe essa ligação forte. Por fim, meu coração também pede o Brasil… Estaria claramente no meu top 3 de seleções para enfrentar”, confessou.
O atacante acredita que “no momento em que a bola rolar, a vida vai mudar”, lembrando que todo o processo até chegar ao patamar de uma Copa do Mundo não foi fácil.
“Passamos por muitas coisas, algumas boas, outras ruins. Já tivemos a experiência de enfrentar a Argentina após eles serem campeões mundiais. Foi incrível. Vimos toda a celebração daquela nação. Em 2019, por outro lado, depois do jogo contra o Haiti, um dos nossos goleiros, Jarzinho Pieter, foi encontrado morto no quarto do hotel. Foi algo muito duro de lidar, mas tudo isso uniu mais o grupo. Ele também tinha o sonho de chegar a um Mundial, mas infelizmente não pôde testemunhar isso. Também diziam a ele que era louco…”
Pai técnico em jogo decisivo
O experiente Dick Advocaat foi o responsável pelo trabalho que levou Curaçau à Copa do Mundo. No entanto, no momento decisivo, o holandês teve de deixar o comando para retornar à casa com problemas particulares. Seu auxiliar assumiu o posto:Dean Gorré, pai de nosso entrevistado.
“Meu pai foi o treinador no jogo decisivo (contra a Jamaica), e foi incrível. Foi fenomenal. Ele já tinha sido treinador interino antes. Com a ausência de Dick Advocaat, por circunstâncias que o obrigaram a voltar para casa, eu e os jogadores queríamos que meu pai assumisse novamente. O próprio treinador também queria que ele continuasse como auxiliar quando assumiu. Acho que o Dick Advocaat vai estar no banco na Copa do Mundo — ele merece muito isso”, afirmou Kenji Gorré.
Caso você não esteja familiarizado com o passado de Gorré pai, o antigo ponta, nascido no Suriname, representou SVV, Dordrecht, Feyenoord, FC Groningen e Ajax nos Países Baixos. Curiosamente, venceu dois títulos — um por cada rival. Primeiro, em 1992/93, foi campeão com o clube de Roterdã; depois, em 97/98, conquistou o título com o time de Amsterdã.
Por fim, também atuou na Inglaterra, vestindo as camisas de Huddersfield Town, Barnsley e Blackpool. Kenji, o filho, apesar de ter nascido em território holandês, teve a oportunidade de dar os primeiros chutes em solo britânico.
Dispensado por Ferguson no United
A carreira de Kenji Gorré começou em um palco ilustre. Foi jovem para a base do Manchester United, e lá teve experiências que guarda para a vida.
“Fazer toda a base no Manchester United foi único. Nos treinos que fiz com a equipe principal, pude estar em contato com o melhor treinador do mundo – Sir Alex Ferguson. Estar também com Rio Ferdinand, Paul Scholes, essas lendas do jogo, foi muito bom. Esse tipo de atletas mais experientes, naquela época, nos faziam limpar as chuteiras, arrumar as bolas… tanta coisa. A cultura mudou, mas foi interessante. Limpávamos o ginásio, etc…”, começou por dizer.
Nem todas as recordações foram boas, no entanto. O encontro final com Ferguson foi um momento difícil para Gorré, quando percebeu que não conseguiria seguir o seu sonho nos Red Devils.
Kenji e cia no Manchester United @Arquivo pessoal
“O Sir Alex Ferguson chamou-me ao escritório e eu nem sabia o que pensar. Bati à porta e não fazia ideia do que esperar. Senti muitas borboletas no estômago antes de falar com ele. Bati à porta, olhei assim de soslaio para perceber se ele estava no escritório, ele disse para entrar e entrei. O escritório dele tinha uma bela vista para o campo de treinos, não eram poucas as vezes que ele assistia a um treino de lá”, começou por contar.
“Chego lá e diz-me: ‘Senta-te, filho’. Chamava-nos muito por filho, era uma figura paternal. Sentei-me e ele disse: ‘Kenji, agradeço-te por tudo o que tens feito, é um excelente jogador, foi incrível ter chegado até aqui, mas acho que o melhor para o teu desenvolvimento é ir embora. Acredita, é complicado dizer-te isto.’ Ele disse que podia me dar mais um ano, mas não seria bom. A primeira equipe tinha o Ryan Giggs, o Nani… e outros garotos a subir como o Jesse Lingard e Adnan Januzaj”, recordou.
“Fiquei de coração partido. Senti que o futebol acabou para mim. Não tinha clube, não sabia o que era isso. Sempre fui o garoto que jogava no Manchester United, todos me conheciam assim. De repente tiraram-me isto e fiquei a pensar: ‘Quem sou eu agora’ Foi muito difícil”, admitiu.
“Meus pais ficaram na Inglaterra por mim. Sentia pressão por isso. Só me lembro de ir para casa chorando. Parei o carro em qualquer lugar, chorava e só pensava como ia contar ao meu pai e à minha mãe, aos meus irmãos. Contei-lhes e eles deram-me aquela noite para respirar fundo e pensar”, disse. Sir Alex Ferguson é uma lenda do Manchester United
Dean Gorré, também já experiente no mundo do futebol, não demorou a intervir: “Na manhã seguinte, meu pai disse: ‘Kenji, quando uma porta se fecha, há outra que se abre. Você está na base de um clube de topo mundial. Onde quer ir agora?’ Deu um clique dentro de mim e cheguei à conclusão que realmente tinha de procurar outras oportunidades, existem muitos clubes. Fui fazer uns treinos no Everton e destacava-me, não fiquei porque não precisavam de ninguém com as minhas características. Depois, assinei dois anos pelo Swansea.”, explicou.
Afirmar-se como profissional não foi fácil para Gorré, que passou ainda por empréstimo por ADO Den Haag (Holanda) e Northampton Town (Inglaterra). Foi em uma pequena ilha, como Curaçau, que deu a volta por cima, no modesto Nacional, da Madeira, em Portugal. Longe do glamour de Old Trafford, o atacante encontrou sequência e passou ainda pelo Catar antes de seguir para Israel.
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