Em um futebol dominado pelas apostas em todos os setores (sem sermos hipócritas), o jogo muitas vezes fica em segundo plano. Quando levar um cartão amarelo se torna mais importante do que fazer um gol, deixamos de lado a essência do English Game de mais de um século e meio atrás, que viraria referência social de uma cultura em ebulição, para olharmos para o nosso bolso. Às vezes, onde mais o jogo deveria se aproximar de suas origens, é onde ele mais se afasta.
Nas divisões inferiores da Finlândia, um caso envolvendo um brasileiro ganhou destaque nos últimos dias. E a história de Jonatan Guerreiro nos ajuda a navegar por essa tormenta.
Das areias para a neve
Jonatan Oliveira Nunes Maciel foi forjado pela vida para se adaptar a qualquer circunstância. Se hoje ele está balançando as redes no futebol finlandês, há poucos anos estava nas areias paulistas jogando beach soccer no Corinthians.
Conhecido como Jonatan Guerreiro, o atacante começou no campo, na base do Palmeiras, e rodou o Brasil jogando bola. Até que, há 11 anos atrás, Jonatan começou a ressignificar a vida com a chegada de Sofia, sua filha. No ano seguinte veio Emanuelle, e o jogador passou a fazer de tudo para ampliar a renda.
Conciliou o beach soccer com o futebol não só no Brasil, mas também na Europa. As frias Estônia e Finlândia já foram palco dos seus gols, nas areias e nos gramados. Longe de casa, Guerreiro conseguiu dar uma vida melhor para as filhas. “Quero que minhas filhas comprem o que quiserem”, deixou claro, em conversa por telefone com a reportagem de oGol.
Foi na Finlândia que Jonatan percebeu que fazer gols pode não ser sinônimo de sucesso e dinheiro. Pelo contrário…
O caso do Finnkurd
O FC Finnkurd é um clube amador de Espoo, na região de Helsinque. A equipe disputa a Kolmonen, uma espécie de quarta divisão local, e continuaria no anonimato se não fosse por uma investigação da polícia local.
Desde 2023, o Finnkurd sofre com goleadas elásticas, chegando a perder, em maio deste ano, para o HooGee, por 12 a 0. A polícia da região de Helsinque investiga a equipe por manipulação de resultados.
Na mesma temporada que perdeu por 12 a 0, 7 a 0 (2x), 8 a 1 e 6 a 1, o Finnkurd venceu por 8 a 1. Na goleada favorável, Jonatan Guerreiro fez sete gols e acabou sendo personagem.
qDeus sabe quem traiu a gente e o time, e cedo ou tarde eles vão enfrentar as consequênciasDeniz Özbek, dirigente do Finnkurd
Pouco menos de um mês antes da goleada, o atacante foi apontado pelo clube para substituir o compatriota, João Paulo de Avelino, e se tornar técnico e jogador. A goleada por 8 a 1, entretanto, não deixou todos no elenco satisfeitos.
Após o jogo, a polícia foi ao vestiário do time e conduziu Jonatan para a delegacia, como responsável técnico da equipe. O jogador explica que nunca foi preso, mas apenas chamado a prestar depoimento por ser o técnico.
“Policial falou de boa comigo, não algemaram, nem nada, trataram bem, e por eu ser treinador me levaram para depor. Perguntaram: ‘você poderia dar seu celular para a gente averiguar?’ Falei: ‘sem problemas’. Fui no vestiário com os policiais, falando de boa, dei para eles, passei a senha pra eles. Eles averiguaram, devolveram o celular e estou vivendo normal na Finlândia”, ressaltou.
Segundo Jonatan, a polícia investiga o Finnkurd há cinco anos por manipulação de resultados. O brasileiro garante não ter envolvimento com apostas, mas admite desconfiar que jogadores do elenco fazem parte.
“A informação que tinha é que o pessoal do clube mexia com apostas, que vendia os jogos para perder. Se eles vendem o jogo para perder, porque tem eu para fazer o gol? Os grupos de aposta não contratam centroavante para perder. Eu fiz sete gols porque a equipe era boa e eu estava lutando pela artilharia. O presidente pediu a todos para dar passe para mim, porque eu precisava de gols”, contou Jonatan, que defendeu a equipe pela primeira vez em 2024.
O brasileiro cita alguns sinais vermelhos, como quando “colocaram um preparador físico para jogar. Ele fez gol contra, fez pênalti”. E garante que chegou a discutir com os companheiros pela postura suspeita em campo. Jonatan chegou a ser mandado embora do clube, que logo voltou atrás.
“(Em um jogo, a gente começou ganhando de 2 a 0, e a bola não chegava mais para a gente (jogadores brasileiros). Os finlandeses não tocavam. Perdemos de 4 a 2. No mesmo dia, ele (presidente) me mandou embora do clube porque fui o único que briguei de verdade, falei: ‘Você está de brincadeira’. Briguei com o zagueiro e o lateral”, contou.
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Jonatan foi convencido a voltar ao clube pela proposta financeira. “Cobriram meu salário e já deixaram dinheiro com as minhas filhas, só fui por isso”.
“Fui mandado embora depois de três jogos, perdemos a partida que briguei com todo mundo, aí ele (presidente) me mandou embora. Mandei pra ele uma mensagem muito f… Falei que não sou os jogadores que ele tem, que gostam de perder. E no outro dia, ele me manda mensagem, que os jogadores pediram pra voltar, que eu sou o capitão”, recordou.
O atacante lembra que outros brasileiros também deixaram a equipe por não fazer parte do esquema. “Já fiquei sabendo que já f… muita gente com gol. Às vezes eles apostavam pra não fazer muito gol, e eu vivo de gol, sou atacante”, contou.
Jonatan Guerreiro voltou, virou artilheiro e também treinador, mas não segue no Finnkurd para a próxima temporada. O brasileiro conta que, desde que foi levado para a delegacia após a partida com o EsPa Renat, não foi mais procurado.
“Depois que devolveram o celular, nunca mais falaram comigo. Pediram ajuda, mas falei: ‘Não sou policial, mas se contratarem vou atrás’ (risos). Não recebo pra isso. Policial ainda falou pra mim: ‘vai ter de pagar advogado’. Falei: meu amigo, chama do governo que não tenho dinheiro não'”, contou, de forma humorada.
Jonatan segue na Finlândia, treinando em outra equipe e também fazendo outros trabalhos por fora. “Não só jogo bola, mas também faço meus ‘corre’, pinto uma casa aqui, pinto ali. Não consigo ficar parado, quero trabalhar, ganhar meu dinheiro, quero que minhas filhas comprem o que elas quiserem. Dar pra elas tudo o que não tive”, confessou.
Dirigente comenta caso
A reportagem conversou também com Deniz Özbek, que é membro do conselho de diretores do clube. O dirigente espera o fim das investigações para comentar o caso.
“A polícia tem uma investigação em andamento e nós, como clube, já nos reunimos com a federação finlandesa. Não posso fazer qualquer comentário definitivo nesse momento, até as investigações serem concluídas, mas estamos tomando as precauções necessárias da nossa parte”, garantiu.
Questionado se tem o conhecimento de que atletas da equipe estariam participando de esquemas de apostas, Deniz confirmou que há suspeitas dentro do clube.
“Não seria ético dar nomes a suspeitos sem provas, mas certamente há pessoas que suspeitamos. Esperamos que a verdade apareça nesse processo, porque no final das contas a situação impactou a gente de forma negativa”, afirmou.
O dirigente ainda fez questão de valorizar os jogadores brasileiros que defenderam a equipe nas últimas temporadas.
“Certamente respeitamos e amamos eles como indivíduos, independentemente da nacionalidade. Agradecemos pelas contribuições deles, sempre foram amigáveis. Abrimos a porta a eles (brasileiros) e sempre houve uma atmosfera positiva”, garantiu o dirigente, antes de finalizar.
“Deus sabe quem traiu a gente e o time, e cedo ou tarde eles vão enfrentar as consequências”.
A reportagem entrou em contato também com o departamento de polícia da região de Espoo, que falou não ter informações sobre o caso.
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